De: Pedro Pinho <pedroapinho652@gmail.com>
Para: undisclosed-recipients:;
Assunto: Do neoliberalismo progressista a Trump – e além
Data: Sáb 19/10/19 10:43
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Assunto: Do neoliberalismo progressista a Trump – e além
Data: Sáb 19/10/19 10:43
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1 Texto originalmente publicado na
American Affairs, v. 1, n. 4, p. 46-64, inverno de 2017. Tradução de Paulo S.
C. Neves.
2 Nancy Fraser é a Professora Henry and Louise A. Loeb de Filosofia e de Política na New School for Social Research; recebeu o prêmio Alfred Schutz da American Philosophical Association e é doutora honoris causa pela Universidad Nacional de Córdoba (Argentina).
Política & Sociedade -
Florianópolis - Vol. 17 - Nº 40 - Set./Dez. de 2018
Do neoliberalismo progressista a Trump
– e além1
Nancy Fraser2
Nancy Fraser2
Resumo
Neste artigo, Nancy Fraser passa em revista a falência do modelo politicamente hegemônico de uma aliança entre uma versão progressiva das políticas de reconhecimento e uma versão regressiva da política econômica, chamada por ela de neoliberalismo progressista. Frente à emergência de uma versão hiper-reacionária do neoliberalismo, simbolizada por Donald Trump, a autora defende a ideia de uma versão progressista do populismo como ator contra-hegemônico no atual contexto social.
Palavras-chave: Neoliberalismo; reconhecimento; hegemonia; populismo.
Introdução
Qualquer um que fale em “crise” hoje em
dia corre o risco de ser rejeitado, tido como um falastrão, devido à
banalização do termo, por meio de discursos desarticulados e infindáveis. Mas
há um sentido preciso em que enfrentamos uma crise hoje. Se a caracterizarmos
com precisão e identificarmos suas dinâmicas características, poderemos
determinar melhor o que é necessário para resolvê-la. Com base nisso, poderemos
também vislumbrar um caminho que leve para além do atual impasse – com o
realinhamento político para a transformação social.
À primeira vista, a crise atual parece
ser política. Sua expressão mais espetacular está bem aqui, nos Estados Unidos:
Donald Trump – sua eleição, sua presidência e a discórdia em torno dele.
Mas não há escassez de casos análogos alhures: o desastre do Brexit no Reino Unido; a declinante
legitimidade da União Europeia e a desintegração dos partidos socialdemocratas e de centro-direita, que a promoveram; o sucesso crescente de partidos racistas e anti-imigrantes em todo o norte e centro-leste da Europa; e o aumento de forças autoritárias, algumas se classificando como protofacista, na América Latina, Ásia e Pacífico. Nossa crise política, se é isso o que é, não é apenas americana, mas global.
O que torna essa afirmação plausível é que, apesar de suas diferenças, todos esses fenômenos compartilham uma característica comum.
Todos envolvem um enfraquecimento dramático, se não um evidente colapso da autoridade das classes políticas estabelecidas e dos partidos políticos.
É como se massas de pessoas em todo o mundo pararam de acreditar no reinante senso comum que sustentou a dominação política nas últimas décadas.
É como se tivessem perdido a confiança na boa fé das elites e buscavam novas ideologias, organizações, e liderança.
Dada a escala da falha, é improvável que isso seja uma coincidência.
Vamos supor, portanto, que enfrentamos uma crise política global.
Tão importante quanto possa parecer, isso é somente parte da história.
Os fenômenos apenas evocados aqui constituem a vertente especificamente política de uma crise vasta e multifacetada, que também tem outras vertentes – econômica, ecológica, e social – as quais, tomadas em conjunto, resultam em uma crise geral. Longe de ser meramente setorial, a crise política não pode ser entendida independente dos obstáculos aos quais ela está reagindo em outras instituições ostensivamente não políticas.
Nos Estados Unidos, esses obstáculos incluem a meta-estatização das finanças; a proliferação de empregos precários no setor de serviços, como aqueles no McDonald’s; o inchamento da dívida dos consumidores para permitir: a compra de produtos baratos produzidas alhures; o crescimento simultâneo das emissões de carbono, de condições climáticas extremas e do negaciosismo climático;
o encarceramento racionalizado em massa e a violência policial sistêmica; e o crescimento do estresse na vida familiar e comunitária, graças, em parte, ao prolongamento das horas de trabalho e à diminuição dos auxílios sociais.
o encarceramento racionalizado em massa e a violência policial sistêmica; e o crescimento do estresse na vida familiar e comunitária, graças, em parte, ao prolongamento das horas de trabalho e à diminuição dos auxílios sociais.
Juntas, essas forças vinham esmagando nossa ordem social há algum tempo sem produzir um terremoto político.
Agora, no entanto, todas as apostas estão encerradas.
Na rejeição generalizada atual da política, como de costume, uma crise objetiva e sistêmica encontrou sua voz política subjetiva.
A vertente política da nossa crise geral é uma crise de hegemonia.
Donald Trump é o garoto-propaganda dessa crise hegemônica.
Mas, não podemos entender sua ascensão sem esclarecemos as condições que permitiram isso.
E isso significa identificar a visão de mundo que o Trumpismo deslocou e mapear o processo por meio do qual isso se desenrolou.
As ideias indispensáveis para esse fim vêm de Antonio Gramsci. “Hegemonia” é o termo que ele usa para o processo pelo qual uma classe dominante naturaliza sua dominação instalando os pressupostos de sua própria visão de mundo como o senso comum da sociedade como um todo. Sua contrapartida organizacional é o “bloco hegemônico”: uma coalizão de forças sociais díspares que a classe dominante monta e através da qual afirma sua liderança.
Se esperam desafiar esses arranjos, as classes dominadas devem construir um novo, mais persuasivo senso comum, ou “contra-hegemonia”, e uma nova, mais poderosa aliança política, ou “bloco contra-hegemônico”.
A essas ideias de Gramsci, devemos acrescentar uma outra.
Todo bloco hegemônico incorpora um conjunto de suposições sobre o que é justo e correto e o que não é.
Desde pelo menos a metade do século XX, nos Estados Unidos e na Europa, a hegemonia capitalista foi forjada combinando dois aspectos diferentes de direito e justiça – um focado na distribuição, o outro no reconhecimento.
O aspecto distributivo transmite uma visão sobre como a sociedade deve alocar bens divisíveis, especialmente renda.
Este aspecto fala sobre a estrutura econômica da sociedade e, ainda que
obliquamente, às suas divisões de classe.
O reconhecimento expressa um senso de como a sociedade deve atribuir respeito e estima, as marcas morais do deleito de associação e do pertencimento. Focado na estrutura de status da sociedade, este aspecto refere-se às suas hierarquias de status.
Juntos, distribuição e reconhecimento constituem os componentes normativos essenciais com os quais as hegemonias são construídas.
Colocando essa ideia junto com as de Gramsci, podemos afirmar que o que fez Trump e o Trumpismo possíveis foi o colapso de um bloco hegemônico anterior – e o descrédito de seus nexos normativos distintivos de distribuição e reconhecimento.
Analisando a construção e ruptura desse nexo, podemos esclarecer não apenas o Trumpismo, mas também as perspectivas, após Trump, de um bloco contra-hegemônico que poderia resolver a crise.
Deixe-me explicar.
A hegemonia do neoliberalismo progressivo Antes de Trump, o bloco hegemônico que dominava a política americana era o neoliberalismo progressista.
Isso pode soar como um oxímoro, mas foi uma aliança real e poderosa de dois companheiros improváveis:
1) por um lado, as principais correntes liberais dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ);
2) por outro lado, os setores mais dinâmicos, de alto nível “simbólico” e financeiro da economia dos EUA (Wall Street, Vale do Silício e Hollywood).
O que manteve esse casal estranho junto foi uma combinação diferenciada de pontos de vista sobre distribuição e reconhecimento.
O bloco progressista-neoliberal combinava um programa econômico expropriativo e plutocrático com uma política liberal-meritocrática de reconhecimento.
O componente distributivo deste amálgama era neoliberal.
Determinado a soltar as forças do mercado da mão pesada do Estado e da mina de “impostos e gastos”, as classes que controlavam este bloco queriam liberalizar e globalizar a economia capitalista.
O que isso significava, na realidade, era financeirização: o desmantelamento das barreiras e proteções para a livre circulação do capital; a desregulamentação dos bancos e a bolha das dívidas predatórias; desindustrialização, enfraquecimento dos sindicatos e propagação de trabalho precário e mal remunerado.
Popularmente associadas com Ronald Reagan, mas substancialmente implementadas e consolidadas por Bill Clinton, essas políticas esvaziaram os padrões de vida da classe trabalhadora e da classe média, enquanto transferiam riqueza e valor para cima, principalmente para o grupo 1% mais rico, é claro, mas também para os extratos superiores das classes profissionais em funções gerenciais.
Os neoliberais progressistas não sonharam com essa economia política.
Essa honra pertence à direita: aos seus intelectuais luminares Friedrich Hayek, Milton Friedman e James Buchanan; aos seus políticos visionários Barry Goldwater e Ronald Reagan; e aos seus facilitadores endinheirados, Charles e David Koch, entre outros.
Mas a versão “fundamentalista” de direita do neoliberalismo não podia tornar-se hegemônica em um país cujo senso comum ainda era moldado pelo pensamento do New Deal, a “revolução dos direitos” e uma série de movimentos sociais descendendo da Nova Esquerda.
Para o projeto neoliberal triunfar, ele tinha de ser reembalado, dado um apelo mais amplo, ligado a outras aspirações não econômicas de emancipação.
Somente quando adornada como progressista poderia uma
economia política profundamente regressiva tornar-se o centro dinâmico de um novo bloco hegemônico.
Calhou, desse modo, aos “Novos Democratas” contribuir com o ingrediente essencial: uma política progressista de reconhecimento. Recorrendo às forças progressistas da sociedade civil, eles difundiram um ethos de reconhecimento superficialmente igualitário e emancipatório.
O núcleo desse ethos eram os ideais de “diversidade”, “empoderamento” das mulheres e direitos LGBTQ; pós-racialismo, multiculturalismo e ambientalismo.
Esses ideais foram interpretados de uma forma específica e limitada que era totalmente compatível com a Goldman Sachsificação da economia dos EUA.
Proteger o meio ambiente significava comércio de carbono.
Promover a posse da casa própria significava empréstimos subprimes3 agrupados e revendidos como títulos lastreados em hipotecas.
Igualdade significava meritocracia.
A redução da igualdade à meritocracia foi especialmente fatídica.
O programa neoliberal progressista para atingir uma ordem de status justa não visava a abolir a hierarquia social, mas “diversificá-la”, “empoderando” mulheres “talentosas”, pessoas de cor e minorias sexuais para que chegassem ao topo. E esse ideal era inerentemente específico a cada classe:
voltado para garantir que indivíduos “merecedores” de “grupos sub-representados” poderiam atingir posições de prestígio e poder aquisitivo igual aos dos homens brancos heterossexuais de sua própria classe.
A variante feminista diz isso; mas, infelizmente, não é a única. Focado em “afirmar-se” e “quebrar o teto de vidro”, seus principais beneficiários só poderiam ser os que já possuíam o necessário capital social, cultural e econômico.
Todos os outros seriam mantidos no andar debaixo.
3 Empréstimo de baixa qualidade, sem lastro financeiro e incompatível com a renda dos clientes. (Nota do
Tradutor).
Por mais enviesada que fosse, essa política de reconhecimento funcionou para seduzir as principais correntes dos movimentos sociais progressistas para o novo bloco hegemônico. Certamente, nem todas as feministas, antirracistas, multiculturalistas, e assim por diante, foram ganhos para a causa neoliberal progressista.
Mas aqueles que o foram, conscientemente ou não, constituíam o maior, o mais visível segmento de seus respectivos movimentos, enquanto aqueles que resistiram foram confinados às margens.
Os progressistas no bloco neoliberal progressista eram, com certeza, seus parceiros juniores, muito menos poderosos do que seus aliados em Wall Street, Hollywood e no Vale do Silício.
Embora eles contribuíssem com algo essencial para essa ligação perigosa: carisma, um “novo espírito
do capitalismo”.
Exsudando uma aura de emancipação, esse novo “espírito” adornava a atividade econômica neoliberal com um frisson de excitação. Agora associado com o pensamento progressista e libertário, o cosmopolita e o moralmente avançado, o sombrio repentinamente se tornou emocionante. Graça em grande parte a este ethos, políticas que fomentaram uma vasta redistribuição de riqueza e renda para estratos superiores adquiriram a pátina de legitimidade.
Para alcançar a hegemonia, no entanto, o bloco neoliberal progressista emergente teve que derrotar dois rivais diferentes.
Primeiro, teve de vencer os remanescentes não insubstanciais da coalizão do New Deal. Antecipando o New Labour de Tony Blair, a ala Clintoniana do Partido Democrata silenciosamente desarticulou essa antiga aliança.
No lugar de um bloco histórico que havia unido com sucesso os trabalhadores organizados, os imigrantes, os afro-americanos, as classes médias urbanas e algumas facções do grande capital industrial por várias décadas, eles forjaram uma nova aliança de empresários, banqueiros, suburbanos, “trabalhadores que lidam com o simbólico”, novos movimentos sociais, latinos e jovens, ao mesmo tempo em que mantinha o apoio dos afro-americanos, que achavam que não tinham para onde ir.
Fazendo a campanha pela nomeação presidencial democrata em 1991/1992, Bill Clinton venceu no dia em que falava sobre a diversidade, multiculturalismo e os direitos das mulheres, mesmo enquanto se preparava para caminhar a caminhada de Goldman Sachs.
A derrota do neoliberalismo reacionário
O neoliberalismo progressivo também teve de derrotar um segundo competidor, com o qual compartilhou mais do que deixava transparecer.
O antagonista neste caso foi o neoliberalismo reacionário.
Alojado principalmente no Partido Republicano e menos coerente do que seu rival dominante, este segundo bloco ofereceu um nexo diferente entre distribuição e reconhecimento.
Combinou uma política similar, neoliberal de distribuição, com uma política diferente, reacionária de reconhecimento.
Embora afirmando promover os pequenos negócios e a manufatura, o verdadeiro projeto econômico do neoliberalismo reacionário estava centrado no apoio às finanças, à produção militar e à energia extrativa, tudo para
beneficiar, sobretudo, os 1% global. O que supostamente deveria tornar isso palatável para a base que eles buscavam criar era uma visão excludente de uma ordem de status justa: anti-nacional, anti-imigrante e pró-cristã, se não abertamente racista, patriarcal e homofóbica.
Essa foi a fórmula que permitiu aos evangélicos cristãos, brancos sulistas, americanos rurais e de cidades pequenas e estratos da classe trabalhadora branca descontentes coexistissem por um par de décadas, embora desconfortavelmente, com libertários, partidários do Tea Partiers, a Câmara de Comércio e os irmãos Koch, além de um punhado de banqueiros, falcões do setor imobiliário, magnatas do setor de energia, capitalistas de risco e especuladores de fundos especulativos.
Ênfases setoriais à parte, o neoliberalismo reacionário não diferia substancialmente de seu rival neoliberal progressista nas grandes questões de economia política. Previsíveis, as duas partes debateram um pouco acerca dos “impostos sobre os ricos”, com os democratas geralmente insistindo mais.
Mas ambos os blocos apoiavam o “livre comércio”, os baixos impostos corporativos, direitos trabalhistas reduzidos, a primazia do interesse dos acionistas, a lógica de toda recompensa para os vencedores e a desregulamentação financeira. Ambos os blocos elegeram líderes que buscavam “grandes barganhas” destinadas a cortar direitos. As diferenças-chave entre eles se voltavam para o reconhecimento, não para a distribuição.
Em grande medida, o neoliberalismo progressista ganhou essa batalha também, mas a um custo. Os centros de fabricação decadentes, especialmente no chamado Cinturão da Ferrugem4, foram sacrificados. Essa região, junto com os novos centros industriais no Sul, sentiram um grande impacto graças a uma tríade das políticas de Bill Clinton: NAFTA, a adesão da China à OMC (justificada, em parte, como promoção da democracia), e a revogação da lei Glass-Steagall5. Juntas, essas políticas e suas sucessoras devastaram as comunidades que dependiam da manufatura.
No decorrer de duas décadas de hegemonia neoliberal progressista, nenhum dos dois grandes blocos fez qualquer esforço sério para apoiar essas comunidades.
Para os neoliberais, suas economias não eram competitivas e deveriam estar sujeitas “à correção do mercado”. Para os progressistas, suas culturas estavam presas no passado, ligadas a valores obsoletos e paroquiais que logo desapareceriam em uma nova desregulamentação cosmopolita. Em nenhum dos dois terrenos – distribuição ou reconhecimento – neoliberais progressistas poderiam encontrar algum motivo para defender as comunidades manufatureiras do Cinturão da Ferrugem e do sul.
A lacuna hegemônica – e a luta para preenchê-la
O universo político que Trump articulou e era altamente restritivo. Ele foi construído em torno da oposição entre duas versões do neoliberalismo, distinguidas principalmente pelo eixo do reconhecimento. Potencialmente alguma delas poderia escolher entre multiculturalismo e etno-nacionalismo.
Mas uma delas estava presa, de qualquer forma, com a financeirização e a desindustrialização.
Com o cardápio limitado aos neoliberalismos progressista e reacionário, não havia força para se opor à dizimação dos padrões de vida da classe trabalhadora e da classe média.
Projetos anti-neoliberais estavam seriamente marginalizados, se não simplesmente excluídos, da esfera pública.
Isso deixou um segmento considerável do eleitorado dos EUA, vítima da financeirização e da globalização corporativa, sem um lar político natural. Dado que nenhum dos dois grandes blocos falou por eles, havia uma lacuna no universo político americano: um vazio, zona desocupada, onde políticas anti-neoliberais e pró-família trabalhadora poderiam ter 4 Denominação para a área de industrialização antiga compreendida aproximativamente entre as cidades de Chicago e Nova York (Nota do Tradutor).
5 Lei de 1933 que impedia que os bancos se ocupassem de atividades não bancárias, como os seguros, criado raízes. Dado o ritmo acelerado da desindustrialização, a proliferação de empregos precários e de baixos salários, a expansão das dívidas predatórias, e o consequente declínio nos padrões de vida para os dois terços inferiores dos americanos, era apenas uma questão de tempo antes que alguém passasse a ocupar aquele espaço vazio e preencher a lacuna.
Alguns supuseram que esse momento havia chegado em 2007/2008.
Um mundo ainda se recuperando de um dos piores desastres de política externa na história dos EUA foi então forçado a enfrentar a pior crise financeira desde a Grande Depressão – e uma quase desintegração da economia global. A política, como de costume, foi deixada de lado.
Um afro--americano que falou de “esperança” e “mudança” ascendeu à Presidência, prometendo transformar não apenas a política, mas toda a “mentalidade” da política americana. Barack Obama poderia ter aproveitado a oportunidade para mobilizar apoio em massa para uma grande mudança do neoliberalismo, mesmo em face da oposição do Congresso. Em vez disso, ele confiou a economia às próprias forças de Wall Street que quase a destruíram.
Definindo o objetivo como “recuperação” em oposição à reforma estrutural, Obama despejou enormes somas em planos de salvamento de bancos que eram “grandes demais para quebrar”, mas ele não conseguiu fazer nada remotamente comparável para as vítimas deles: os dez milhões de americanos que perderam suas casas em execuções hipotecárias durante a crise. A única exceção foi a expansão da assistência médica através do Affordable Care Act, que forneceu um real benefício material para uma parte da classe trabalhadora dos EUA.
Mas essa era a exceção que comprovava a regra.
Ao contrário do single payer6 e das propostas de public option7 que Obama renunciou antes mesmo das negociações sobre a assistência médica terem começado, sua abordagem reforçou as próprias divisões dentro da classe trabalhadora que, de fato, se mostrariam tão politicamente fatais. Para dizer tudo, o impulso devastador de sua presidência era manter o status quo do neoliberalismo progressista, apesar de sua crescente impopularidade.
6 Sistema em que os serviços de saúde seriam geridos por uma agência pública ou semipública, capaz de garantir a cobertura universal de saúde.
7 Proposta de criação de uma agência pública que ofereceria planos de saúde mais baratos para competir com
as empresas privadas.
Outra chance de preencher a lacuna hegemônica chegou em 2011, com a erupção do Occupy Wall Street.
Cansado de esperar por reparação do sistema político e resolvendo cuidar do assunto com suas próprias
mãos, um segmento da sociedade civil se apoderou de praças pelo país em nome dos “99 por cento”. Denunciando um sistema que pilhou a grande maioria a fim de enriquecer o um por cento do topo, grupos relativamente pequenos de manifestantes jovens logo atraíram grande apoio – até 60%
do povo americano, de acordo com algumas pesquisas – especialmente de sindicatos sitiados, estudantes endividados, famílias de classe média em dificuldades e o crescente “precariado”.
Os efeitos políticos do Occupy foram contidos, no entanto, servindo principalmente para reeleger Obama. Foi adotando a retórica do movimento que ele ganhou o apoio de muitos que iriam votar em Trump em 2016 e, assim, derrotou Romney em 2012. Ele venceu por mais quatro anos; contudo, a recém-descoberta consciência de classe do presidente evaporou rapidamente. Confinando a busca por “mudança” à emissão de ordens executivas, ele nem processou os malfeitores de riqueza nem usou o púlpito para mobilizar o povo americano contra Wall Street. Assumindo que a tempestade havia passado, as classes políticas dos EUA por pouco perderam o bonde.
Continuando a defender o consenso neoliberal, elas não conseguiram ver em Occupy os primeiros rumores de um terremoto que estava por vir.
Esse terremoto finalmente ocorreu em 2015/2016, como o descontentamento que estava por longo tempo fervendo e que de repente mudou de forma em uma crise aberta da autoridade política. Naquela campanha eleitoral, os dois principais blocos políticos pareceram colapsar.
Do lado republicano, Trump, fazendo campanha com temas populistas, derrotou com facilidade (como ele continua a nos lembrar) seus dezesseis rivais infelizes nas primárias, incluindo vários escolhidos a dedo pelos chefes políticos e principais doadores. No lado democrata, Bernie Sanders, um autoproclamado socialista democrático, montou um surpreendente e sério desafio à sucessora ungida por Obama, que teve de usar cada truque e alavanca do poder partidário para afastá-lo. Em ambos os lados, os scripts habituais foram postos de pernas para o ar na medida em que um par de outsiders ocuparam a lacuna hegemônica e passaram a preenchê-la com novos “memes” políticos.
Tanto Sanders quanto Trump escoriaram a política de distribuição neoliberal. Mas suas políticas de reconhecimento diferiam acentuadamente.
Enquanto Sanders denunciava a “economia manipulada” com sotaques universalistas e igualitários, Trump tomou emprestada a mesma frase, mas a coloriu de nacionalismo e protecionismo. Apostando em tropos excludentes e antigos, ele transformou o que tinha sido “mero” ladrar de cães em explosões de urros de racismo, misoginia, islamofobia, homo e transfobia e sentimento anti-imigrante.
A “classe trabalhadora” que servia de base para sua retórica conjurada era branca, heterossexual, masculina e cristã, que trabalhava na mineração, na perfuração, na construção e na indústria pesada. Em contraste, a classe trabalhadora que Sanders cortejava era ampla e expansiva, abrangendo não só os operários das fábricas do Cinturão da Ferrugem mas também trabalhadores do setor público e de serviços, incluindo mulheres, imigrantes, e pessoas de cor.
Certamente, o contraste entre esses dois retratos da “classe trabalhadora” era em grande medida retórica.
Nenhum retrato correspondia estritamente à base de eleitores de cada candidato. Embora a margem da vitória
de Trump tenha vindo de centros de fabricação eviscerados que tinham apoiado Obama em 2012 e Sanders nas primárias democratas de 2015, seus eleitores também incluíam os habituais suspeitos republicanos – incluindo libertários, donos de negócios, e outros que pouco apelam para o populismo econômico. Da mesma forma, os eleitores mais confiáveis de Sanders eram jovens, americanos com educação superior. Mas esta não é a questão. Como uma projeção retórica de uma possível contra-hegemonia, foi a visão expandida de Sanders sobre a classe trabalhadora dos EUA que mais acentuadamente distinguia seu tipo de populismo do de Trump.
Ambos outsiders esboçaram os contornos de um novo senso comum, mas cada um fez do seu jeito.
Na melhor das hipóteses, a retórica da campanha de Trump sugeriu um novo bloco proto-hegemônico, que podemos chamar de populismo reacionário.
Parecia combinar uma política hiper-reacionária de reconhecimento com uma política populista de distribuição:
com efeito, o muro na fronteira mexicana, além de gastos de larga escala em infraestrutura. O bloco idealizado por Sanders, em contraste, era um populismo progressista.
Ele procurou unir uma política inclusiva de reconhecimento com uma política de distribuição favorável às famílias dos trabalhadores:
reforma da justiça criminal mais assistência médica para todos;
justiça reprodutiva mais ensino superior gratuito; direitos LGBT, mais desmembramento dos grandes bancos. Iscar e trocar8
Contudo, nenhum desses cenários, na verdade, se materializou.
A perda de Sanders para Hillary Clinton removeu a opção populista progressiva da cédula, o que não foi nenhuma surpresa. Mas o resultado subsequente da vitória de Trump sobre ela foi mais inesperado, pelo menos para alguns.
Longe de governar como populista reacionário, o novo presidente ativou a velha expressão iscar e trocar, abandonando as políticas distributivas populistas que sua campanha havia prometido.
Como previsto, ele cancelou o Acordo de Parceria Transpacífico –Trans-Pacific Partnership (TPP). Mas ele contemporizou sobre o NAFTA e falhou ao não avançar nem um milímetro para controlar Wall Street. Trump também não deu um único passo sério para implementar projetos de infraestrutura pública criadores de empregos em larga escala; seus esforços para incentivar a indústria foram limitados a exibições simbólicas de ameaças e alívio na regulamentação para o carvão, cujos ganhos se revelaram em grande parte fictícios.
E longe de propor uma reforma do código tributário cujos principais beneficiários seriam famílias da classe trabalhadora e da classe média, ele assinou a versão republicana padrão, projetada para canalizar mais riqueza para o um por cento mais rico (incluindo a família
Trump).
Como este último ponto atesta, as ações do presidente na frente distributiva incluíram uma forte dose de capitalismo de compadrio e auto-negociação. Mas se Trump, ele mesmo, ficou aquém dos ideais Hayekianos de razão econômica, a nomeação de mais um ex-aluno da Goldman Sachs para o Tesouro garante que o neoliberalismo continuará onde ele realmente conta.
8 “Bait and Switch” (iscar e trocar) é uma expressão para descrever operações comerciais fraudulentas em que se anuncia um produto e se vende outro diferente. (Nota do Tradutor).
Tendo abandonado a política populista de distribuição, Trump passou a apostar na política reacionária de reconhecimento, enormemente intensificada e cada vez mais cruel.
A lista de suas provocações e ações em apoio a hierarquias de status injustas é longa e arrepiante: a proibição de viagens nas suas várias versões, todas dirigidas a países de maioria muçulmana, mal disfarçada pela cínica adição tardia da Venezuela; a destruição dos direitos civis na justiça (que abandonou o uso dos acordos judiciais) e no trabalho (que parou a fiscalização sobre discriminações cometidas por empresas contratadas pelo governo federal); a recusa em defender processos judiciais sobre direitos LGBTQ; a reversão da cobertura do seguro obrigatório de contracepção; a contenção das proteções do Título IX para mulheres e meninas mediante cortes no pessoal de fiscalização; pronunciamentos públicos de apoio às abordagens policiais truculentas de suspeitos, ao desprezo do “Sheriff Joe’s”9 pelo primado do direito, e às “pessoas de bem” entre os brancos supremacionistas que semearam o caos em Charlottesville.
O resultado não é um mero conservadorismo republicano de salão, mas uma política hiper-reacionária de reconhecimento.
No total, as políticas do Presidente Trump divergiram das promessas de campanha do candidato Trump.
Não apenas seu populismo econômico desapareceu, como também seu método de culpabilização cresceu cada vez mais vicioso. O que seus apoiadores votaram, em suma, não foi o que obtiveram.
O resultado não é populismo reacionário, mas o neoliberalismo hiper-reacionário.
O neoliberalismo hiper-reacionário de Trump não constitui um novo bloco hegemônico, no entanto. É, ao contrário, caótico, instável e frágil.
Isso se deve em parte à peculiar psicologia pessoal de seu porta-estandarte e, em parte, devido à sua codependência disfuncional com o establishment do Partido Republicano, que tentou e falhou em reafirmar o seu controle e agora está matando o tempo enquanto procura por uma estratégia de saída.
Nós não podemos agora saber exatamente como isso vai se desenrolar, mas seria tolice excluir a possibilidade de que o Partido Republicano se dividirá.
De qualquer maneira, o neoliberalismo hiper-reacionário não oferece nenhuma perspectiva de hegemonia segura.
9 Trata-se de Joe Arpaio, antigo xerife do Arizona, condenado por seus métodos racistas e desrespeitadores dos direitos fundamentais, foi perdoado por Trump em agosto de 2017.
Mas também há um problema mais profundo. Ao desativar a face econômico-populista de sua campanha, o neoliberalismo hiper-reacionário de Trump efetivamente busca restabelecer a lacuna hegemônica que ele ajudou a explodir em 2016.
Só que agora não consegue suturar essa lacuna.
Agora que o gato populista está fora do saco, é duvidoso que a porção da classe trabalhadora da base de Trump fique satisfeita, por longo tempo, em ter apenas (des)reconhecimento no jantar.
Por outro lado, enquanto isso “a resistência” se organiza.
Mas a oposição está fraturada, compreendendo Clintonistas obstinados, Sanderistas engajados, e muitas pessoas que poderiam ir para um ou outro lado.
Para complicar a paisagem, há uma vaga de grupos arrivistas cujas posturas militantes atraíram grandes doadores apesar (ou por conta) da imprecisão de suas concepções programáticas.
Especialmente preocupante é o ressurgimento de uma velha tendência na esquerda para opor raça à classe.
Alguns resistentes estão propondo reorientar a política do Partido Democrata em torno da oposição à supremacia branca, concentrando esforços em ganhar apoio de negros e latinos.
Outros defendem uma estratégia centrada na classe, voltada para reconquistar comunidades da classe trabalhadora branca que passaram para o lado de Trump.
Ambas as visões são problemáticas na medida em que elas
chamam a atenção para classe e raça como inerentemente antitéticas, um “jogo de soma zero”. Na realidade, ambos os eixos da injustiça podem ser atacados em conjunto, como de fato devem ser.
Nenhum dos dois pode ser superado enquanto o outro floresce.
No contexto de hoje, no entanto, propostas para deixar de lado preocupações relativas à classe representam um risco especial: são susceptíveis de se encaixar nos esforços da ala de Clinton para restaurar o status quo anterior com alguns novos disfarces. Nesse caso, o resultado seria uma nova versão do neoliberalismo progressista – uma que combina o neoliberalismo no front da distribuição com políticas militantes antirracistas de reconhecimento.
Essa perspectiva deve provocar uma descontinuidade entre as forças “antiTrump”. Por um lado, isso enviará rapidamente muitos potenciais aliados na direção oposta, validando a narrativa de Trump e reforçando sua base de sustentação. Por outro lado, isso vai efetivamente agregar forças em torno dele na supressão de alternativas para o neoliberalismo – e, portanto, restabelecendo a lacuna hegemônica. Mas o que eu acabei de afirmar sobre Trump aplica-se igualmente aqui: o gato populista está fora do saco e não vai fugir furtivamente.
Restabelecer o neoliberalismo progressista, em qualquer base, é recriar – na verdade, exacerbar – as mesmas condições que criaram Trump. E isso significa preparar o terreno para futuros Trumps – cada vez mais cruéis e perigosos.
Sintomas mórbidos e perspectivas contra-hegemônicas.
Por todas estas razões, nem um neoliberalismo progressista revivido, nem um neoliberalismo hiper-reacionário inventado é um bom candidato para a hegemonia política no futuro próximo. Os laços que uniram cada um desses blocos desgastaram-se terrivelmente. Além disso, nenhum dos dois está atualmente em posição de moldar um novo senso comum. Ambos não são capazes de oferecer uma imagem autorizada da realidade social, uma narrativa em que um amplo espectro de atores sociais pode encontrar--se.
É igualmente importante citar que nenhuma das variantes do neoliberalismo pode resolver com sucesso os bloqueios objetivos do sistema que fundamentam nossa crise hegemônica.
Na medida em que ambos estão na cama com as finanças globais, não podem desafiar a financeirização, a desindustrialização ou a globalização corporativa.
Nem podem corrigir os padrões de vida em declínio ou o endividamento crescente, as mudanças climáticas ou os “déficits de cuidado”, ou o estresse intolerável na vida da comunidade.
(Re)instalar qualquer um desses blocos no poder é garantir
não apenas uma continuação, mas uma intensificação da crise atual.
O que, então, podemos esperar em curto prazo?
Na ausência de uma hegemonia segura, enfrentamos um interregno instável e a continuação da crise política.
Nesta situação, as palavras de Antonio Gramsci ressoam verdadeiras:
“O velho está morrendo e o novo não pode nascer; nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”.
A menos, é claro, que exista um candidato viável a uma contra-hegemonia.
O candidato mais provável é uma forma ou outra de populismo.
Poderia o populismo ainda ser uma opção possível – se não imediatamente, pelo menos em longo prazo?
O que fala a favor dessa possibilidade é o fato de que entre os partidários de Sanders e aqueles de Trump, algo próximo de uma massa crítica de eleitores dos EUA rejeitou as políticas neoliberais de distribuição em 2015/16.
A pergunta ardente é se essa massa poderia agora ser fundida em um novo bloco contra-hegemônico.
Para isso acontecer, membros da classe trabalhadora que apoiaram Trump e Sanders teriam que se entenderem como aliados – vítimas situadas de maneiras diferentes em uma “economia manipulada”, que eles poderiam buscar transformar em conjunto.
O populismo reacionário, mesmo sem Trump, não é uma base provável para tal aliança. Sua política de reconhecimento hierárquico e excludente é um assassino de negócios infalível para os principais setores das classes operária e média dos EUA, especialmente as famílias dependentes de rendimentos do trabalho em serviços, na agricultura, no trabalho doméstico e no setor público, cujas fileiras incluem um grande número de mulheres, imigrantes e pessoas de cor.
Somente uma política inclusiva de reconhecimento tem chances de lutar para trazer essas forças sociais indispensáveis para uma aliança com outros setores das classes trabalhadora e média, incluindo também comunidades historicamente associadas à manufatura, à mineração e à construção.
Isso deixa o populismo progressista como o mais provável candidato para um novo bloco contra-hegemônico.
Combinando redistribuição igualitária com reconhecimento não hierárquico, esta opção tem pelo menos uma chance de lutar pela união de toda a classe trabalhadora. Mais que isso, essa estratégia poderia posicionar essa classe, entendida de forma ampliada, como a principal força de uma aliança que também inclui segmentos substanciais da juventude, da classe média e do estrato profissional-gerencial.
Ao mesmo tempo, há muito na situação atual que fala contra a possibilidade, em breve, de uma aliança entre populistas progressistas e estratos da classe trabalhadora que votaram em Trump na última eleição.
Entre os principais obstáculos, estão as profundas divisões – ou mesmo ódios – latentes por longo tempo, mas recentemente transformados em uma verdadeira febre por Trump, que, como David Brooks de forma perspicaz coloca, um “faro para cada ferida no corpo político” e não tem escrúpulos em “enfiar um ferro em brasa (nelas) e rasgá-las até ficarem abertas”.
O resultado é um ambiente tóxico que parece validar o ponto de vista, defendido por alguns progressistas, de que todos os eleitores de Trump são “deploráveis” – racistas irredimíveis, misóginos e homofóbicos.
Também reforça a visão inversa, defendida por muitos populistas reacionários, de que todos progressistas são moralizadores incorrigíveis e elitistas presunçosos que olham para baixo, enquanto saboreiam café com leite e acumulam dólares.
Uma estratégia de separação
As perspectivas para o populismo progressista nos Estados Unidos hoje dependem de combater com sucesso esses dois pontos de vista.
O que é necessário é uma estratégia de separação, destinada a precipitar duas grandes divisões.
Primeiro, mulheres menos privilegiadas, imigrantes e pessoas de cor têm de ser cortejados longe das feministas empreendedoras 10, dos antirracistas e anti-homofóbicos meritocráticos, da diversidade corporativa e do capitalismo verde fake, que sequestraram suas preocupações, flexionando-as em termos consistentes com o neoliberalismo.
Este é o objetivo de uma recente iniciativa feminista, que busca substituir “empreendedora” por um “feminismo” para os 99 por cento”.
Outros movimentos emancipatórios devem copiar essa estratégia.
Em segundo lugar, as comunidades de classe trabalhadora do Cinturão da Ferrugem, sulistas e rurais têm de ser persuadidas a abandonar seus aliados atuais cripto-neoliberais. O truque é convencê-los de que as forças que
promovem o militarismo, a xenofobia e o etnonacionalismo não podem e não fornecerão a eles os pré-requisitos materiais essenciais para uma boa vida, enquanto que apenas um bloco populista progressista poderia. Dessa forma, poder-se-ia separar aqueles eleitores de Trump que poderiam, e devem, ser responsivos a tal apelo, daqueles racistas de carteirinha e alt-right11 etnacionalistas que não são.
Afirmar que o primeiro grupo supera o segundo por uma larga margem não é negar que movimentos populistas 10 “Lean-in feminism”, expressão que descreve as feministas que incentivam as mulheres a correrem mais riscos em suas carreiras (nota do tradutor).
11 Trata-se dos grupos que se autodenominam alt-right (direita alternativa) que pregam o supremacismo branco e outras pautas conservadoras (nota do tradutor).
Reacionários baseiam-se fortemente em uma retórica pesada e têm encorajado antigos grupos marginais de verdadeiros supremacistas brancos. Mas isso refuta a conclusão precipitada de que a esmagadora maioria dos eleitores populistas reacionários está sempre fechada para apelos em nome de uma classe trabalhadora expandida do tipo evocado por Bernie Sanders.
Essa visão é não apenas empiricamente errada, mas também contraproducente, provavelmente por ser autoconfiante.
Deixem-me esclarecer. Não estou sugerindo que um bloco populista progressista deve silenciar as preocupações prementes sobre racismo, sexismo, homofobia, islamofobia e transfobia. Pelo contrário, a luta contra todos esses males devem ser centrais para um bloco populista progressista.
Mas é contraproducente abordá-los através de condescendência moralizadora, ao modo do neoliberalismo progressista.
Essa abordagem pressupõe uma visão superficial e inadequada dessas injustiças, exagerando grosseiramente a dimensão de que o problema está dentro das cabeças das pessoas e perdendo a profundidade das forças institucionais e estruturais que as subjuga.
O ponto é especialmente claro e importante no caso da raça.
A injustiça racial nos Estados Unidos hoje não é, no fundo, uma questão de atitudes humilhantes ou de más condutas, embora estas certamente existam.
O ponto crucial são antes os impactos racialmente específicos da desindustrialização e da financeirização no período da hegemonia neoliberal-progressista, como aparece através de longas histórias de opressão sistêmica.
Nesse período, americanos pretos e mestiços, a quem tradicionalmente tinham sido negados créditos imobiliários normais, estando confinados em habitações segregadas e de qualidade inferior, e recebendo remunerações muito baixas para acumular poupanças, foram sistematicamente visados pelos fornecedores de empréstimos subprime e, consequentemente, estavam sujeitos às taxas mais elevadas de execuções hipotecárias no país.
Neste período, também, cidades e bairros com forte proporção de minorias que há muito vinham sendo sistematicamente privadas de recursos públicos foram atingidos pelo fechamento de fábricas em centros manufatureiros em declínio; suas perdas foram calculadas não apenas em empregos mas também nas receitas fiscais, que os privaram de fundos para as escolas, hospitais e manutenção de infraestrutura básica, levando-os eventualmente à falência, como na cidade de Flint – e, em um contexto diferente, no bairro Lower Ninth Ward em Nova Orleans. Finalmente, os homens negros há muito sujeitados a condenações diferenciadas, a encarceramentos severos, a trabalhos forçados e à violência socialmente tolerada, inclusive nas mãos da polícia, estavam neste período massivamente circunscritos a um “complexo industrial de prisões”, mantidas lotadas por uma “guerra às drogas” que visava a posse de crack e por taxas desproporcionalmente altas de desemprego de minorias, tudo isso uma cortesia de “conquistas” legislativas bipartidárias, orquestradas em grande medida por Bill Clinton.
Há que se acrescentar ainda que, embora fosse inspiradora, a presença de um afro-americano na Casa Branca não conseguiu afetar esses desenvolvimentos?
E como poderia?
Os fenômenos apenas evocados mostram a profundidade em que o racismo está ancorado na sociedade capitalista contemporânea – e a incapacidade do discurso moralizador do neoliberalismo progressista para fazer face a isso.
Eles também revelam que as bases estruturais do racismo têm tanto a ver com classe e economia política como com status e (des)reconhecimento.
Igualmente importante, tais fenômenos evidenciam que as forças que estão destruindo as chances de vida das pessoas de cor são parte e parcela do mesmo complexo dinâmico de forças que estão destruindo as chances de vida dos brancos – ainda que algumas especificidades possam diferir.
O efeito é revelar finalmente o inextricável entrelaçamento
entre raça e classe no capitalismo financeirizado contemporâneo.
Um bloco populista progressista deve fazer com que tais insights guiem estrelas.
Renunciando ao estresse neoliberal progressista nas atitudes pessoais, ele deve focar seus esforços nas bases estruturais-institucionais da sociedade contemporânea. Especialmente importante, ele deve destacar as raízes compartilhadas das injustiças de classe e de status no capitalismo financeirizado.
Concebendo esse sistema como uma totalidade social integrada e única, ele deve ligar os danos sofridos por mulheres, imigrantes, pessoas de cor e pessoas LGBTQ com aqueles vivenciados pelas camadas da classe trabalhadora agora atraídas pelo populismo de direita.
Dessa forma, pode estabelecer a fundação para uma nova e poderosa coalizão entre todos os que Trump e seus homólogos em outros lugares estão traindo agora – não apenas imigrantes, feministas e pessoas de cor que já se opõem ao seu neoliberalismo hiper-reacionário, mas também estratos da classe operária branca que até agora o apoiaram.
Aliando grandes segmentos de toda a classe trabalhadora, é crível que essa estratégia poderia ganhar.
Ao contrário de qualquer outra opção considerada aqui, o populismo progressista tem o potencial, pelo menos em princípio, de se tornar um bloco contra--hegemônico relativamente estável no futuro.
Mas o que recomenda o populismo progressista não é apenas seu potencial de viabilidade subjetiva. Em contraste com seus prováveis rivais,ele tem a vantagem adicional de ser capaz, pelo menos em princípio, de abordar o lado real, objetivo, de nossa crise.
Deixem-me explicar.
Como observei no início, a crise hegemônica dissecada aqui é uma vertente de um complexo de crise maior, que engloba várias outras vertentes – ecológica, econômica e social.
É também a contrapartida subjetiva de uma crise sistêmica objetiva para a qual constitui a resposta e da qual não pode ser separada.
Em última análise, esses dois lados da crise – um subjetivo, o outro objetivo – ficam de pé ou caem juntos.
Nenhuma resposta subjetiva, embora aparentemente convincente, pode assegurar uma contra-hegemonia duradoura, a menos que ofereça a dissecação de uma solução real para os problemas objetivos subjacentes.
O lado objetivo da crise não é uma mera multiplicidade de disfunções separadas. Longe de formar uma pluralidade dispersa, suas diferentes vertentes estão interconectadas e compartilham uma fonte comum.
O objeto subjacente de nossa crise geral, a coisa que abriga suas instabilidades múltiplas, é a forma atual de capitalismo – globalizador, neoliberal, financeirizado.
Como toda forma de capitalismo, esta não é um mero sistema econômico, mas algo maior, é uma ordem social institucionalizada. Como tal, engloba um conjunto de condições não econômicas de base que são indispensáveis a uma economia capitalista: por exemplo, atividades não remuneradas de reprodução social, que asseguram a oferta de mão de obra assalariada para produção econômica; um aparato organizado do poder público (lei, polícia, agências reguladoras e capacidades administrativas)
que fornece a ordem, previsibilidade e infraestrutura que são necessárias para a acumulação sustentada; e, finalmente, uma organização relativamente sustentável da nossa interação metabólica com o resto da natureza, que garante suprimentos essenciais de energia e matérias-primas para a produção de commodities, para não mencionar um planeta habitável que possa suportar a vida.
O capitalismo financeiro representa uma maneira historicamente específica de organizar a relação de uma economia capitalista com estas indispensáveis condições básicas. Ele é uma forma de organização social profundamente predatória e instável, que libera a acumulação de capital das próprias restrições (políticas, ecológicas, sociais, morais) necessárias para sustentá-lo ao longo do tempo. Liberto de tais restrições, a economia capitalista consome suas próprias condições básicas de possibilidade.
Isto é como um tigre que come sua própria cauda.
Como a vida social, como tal é cada vez mais dependente da economia, a busca desenfreada do lucro desestabiliza as próprias formas de reprodução social, sustentabilidade ecológica e poder público do qual depende.
Visto desta maneira, o capitalismo financeiro é uma formação social inerentemente propensa a crises.
O complexo de crise que nós encontramos hoje é a expressão cada vez mais aguda de sua tendência intrínseca de auto-desestabilização.
Essa é a face objetiva da crise: a contrapartida estrutural do desmantelamento hegemônico dissecado aqui.
Hoje, assim, ambos os polos da crise – um objetivo, o outro subjetivo – estão em plena floração.
E, como já foi dito, eles se mantêm de pé ou caem juntos.
Resolver a crise objetiva requer uma grande transformação estrutural do capitalismo financeirizado:
uma nova maneira de relacionar economia com política, produção com reprodução, sociedade humana com natureza não humana.
Neoliberalismo em qualquer disfarce não é a solução, mas o problema.
O tipo de mudança que exigimos só pode vir de outro lugar, de um projeto que é no mínimo anti-neoliberal, se não anticapitalista. Tal projeto pode se tornar uma força histórica somente quando incorporada em um bloco contra-hegemônico. Embora o prospecto possa parecer distante agora, nossa melhor chance para uma resolução subjetiva-objetiva é o populismo progressista.
Mas mesmo isso pode não ser um ponto final estável.
O populismo progressista pode acabar sendo transitório – uma estação a caminho de algo novo, uma forma pós-capitalista de sociedade.
Seja qual for a nossa incerteza em relação ao ponto final, uma coisa é clara:
se falharmos em perseguir essa opção agora, prolongaremos o presente interregno. E isso significa condenar os trabalhadores de cada convicção e cada cor ao estresse crescente e ao declínio da saúde, à dívida inflacionária e ao excesso de trabalho, ao apartheid de classe e à insegurança social. Significa imergi-los, também, em uma cada vez maior extensão de sintomas mórbidos – em ódios nascidos de ressentimento e expressos na forma de bodes expiatórios, de surtos de violência seguidos de ondas de repressão, de um mundo vicioso de “cães raivosos”, onde solidariedades levam ao ponto de fuga.
Para evitar esse destino, devemos romper definitivamente tanto com a economia neoliberal quanto com as várias políticas de reconhecimento que ultimamente o têm apoiado – descartando não apenas o etnonacionalismo de exclusão, mas também o individualismo liberal--meritocrático.
Apenas unindo políticas robustas de distribuição igualitária a políticas de reconhecimento substancialmente inclusivas, sensíveis às desigualdades de classe, poderemos construir um bloco contra-hegemônico que poderia nos levar além da crise atual para um mundo melhor.
Cingapura coroou a economia mais aberta e competitiva do mundo
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O FIM DO NEOLIBERALISMO
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