Pedro Augusto Pinho
O Brasil não é uma ilha, nem de prosperidade no oceano revolto, nem de assaltos no mundo em paz. Mas a formação da sociedade brasileira foi, e ainda é, distinta das sociedades europeias colonizadoras, das sociedades orientais e das colonizadas africanas e mesmo americanas.
Isto não significa dispensar conceitos e metodologias surgidos fora do País. Mas torna imperioso o estudo de campo, a análise de nossos registros históricos e do processo civilizatório no Brasil.
Por muito tempo tivemos a nossa História como mera reprodução de visões ideológicas estrangeiras. O mesmo ocorreu com a análise da sociedade brasileira. E não estou ofendendo quem quer que seja. Acredito que muitos agiram de boa fé e com honestidade. Faltou-lhes, apenas, a crítica ao modelo que denomino “didática colonial”.
Jessé Souza, no recente e magnífico “A Elite do Atraso – da escravidão à lava jato” (Leya, RJ, 2017), mostra, em casos concretos, a verdadeira bomba demolidora colocada na soberania brasileira que é a “didática colonial” à qual se soma a dominante, monopolista “comunicação de massa privada”, resultando na internalização, na mente dos brasileiros, da “doutrinação colonial”. Transcrevo de Souza (grifos meus):
“As ideias dominantes para reprodução do elitismo brasileiro, como a do patrimonialismo que demoniza seletivamente o ocupante do Estado e a do populismo que demoniza as classes populares, não são apenas ensinadas nas escolas e nas universidades. Seu ensino nas universidades é importante pois confere o prestígio do conhecimento científico, com seu apanágio de universalidade e neutralidade objetiva, a essas visões muito particulares da vida social e política. Armadas dessa consagração do campo científico, elas passam a ter ainda mais peso na formação de uma opinião pública manipulada ao se transformarem em motes usados como arma política pela grande imprensa.”
Este processo dominador realiza o casamento do “populismo” com a “corrupção”, tendo como padrinho o “comunismo” (hoje mais frequente o “bolivarianismo” ou o “terrorismo”), ficando irresistível para a intervenção das Forças Armadas, agora substituídas pela ditadura do Judiciário, como um desejo do “povo em geral”, sempre que, pela eleição, um dirigente transfira, por menor que seja, ganhos desejados pela rica elite para a necessidade da população pobre.
Vamos entender esta questão da comunicação, numa de suas vertentes, tomando o conceito de “esfera pública”, em Jürgen Habermas (junho/1929), pensador alemão (Mudança Estrutural da Esfera Pública, Unesp, SP, 2014).
Habermas dispõe que há um espaço social que atua como mediador entre o Estado e a sociedade, onde o homem livre, capaz de se expressar e se associar, reivindica seu direito e expõe sua vontade. Norbert Elias identifica o surgimento desta conquista civilizatória nos tempos modernos, derrubados os autoritarismos monárquicos e obtida a igualdade e a liberdade.
Quando propugno pelo projeto de construção da cidadania, esta “esfera pública” aparece na “vocalização”. Deixemos para adiante maiores detalhamentos. Por agora vamos, seguindo o diagnóstico de Jessé Souza, verificar o que ocorre efetivamente nesta esfera, no Brasil.
Ela, simplesmente, não existe. Souza mostra esta diferença entre as nações coloniais europeias e a nossa; “lá não se tem a divisão entre “gente” e “não gente” típica de países escravocratas que nunca criticaram essa herança”. E acrescenta: “o que precisa ser compreendido de uma vez por todas é que ser “gente”, ser considerado “ser humano”,não é um dado natural, mas, sim, uma construção social” (grifos nossos).
Ora, o ser humano não é apenas uma construção biológica, é também uma construção emocional. Seja entendida no sentido estrito da psicologia, quer no da construção social ou, ainda, para os espiritualistas, no transcendente, da alma. E, por essa razão, como outro dos três programas da construção da cidadania, temos a “consciência”, muito mais amplo do que a educação ou o reconhecimento cultural. O programa que falta é a própria “existência”, as condições para a vida da pessoa humana, cidadã.
O que dá a condição particular ao Brasil é, lamentavelmente, sua elite, cruel, mesquinha, intelectual e socialmente atrasada, como no título deste mais recente livro de Jessé Souza.
Todas as mazelas que possamos enumerar: a precária e dependente industrialização, a economia exportadora de produtos primários, a insuficiente escolarização, os sistemas de saúde, transportes e segurança pública que não atendem a requisitos mínimos de efetividade, decorrem, básica e fundamentalmente, da manutenção desta elite, que se formou na colônia e prossegue no século XXI.
É esta elite que, sempre aliada e submissa aos interesses estrangeiros, participa ativamente em todos os golpes no Brasil e responde pelo precário sistema educacional e pela doutrinadora comunicação de massa.
Analisemos a questão educacional, o que denomino “pedagogia colonizadora”.
O ensino, no Brasil, foi durante quase toda nossa existência como País, o que o diplomata e parlamentar Álvaro Valle, com ironia, designava “preparação para sábio”. Era um ensino sem maior objetivo do que o verniz de erudição, próprio para “conversas de salão”. Nem havia formação instrumental nem capacitação crítica.
Na reprovação de Álvaro Valle, havia o interesse industrial, economicamente produtivo, que foi também a preocupação dos governos petistas (2002/2014). A maior prova desta afirmação é a construção e instalação, em 12 anos de governo (Lula e Dilma), de maior número de escolas técnicas do que nos 502 anos anteriores do Brasil.
Peço ao caro leitor que reflita sobre estes dados. Para a classe média, a “preparação para sábio” iria fornecer a seus filhos um diferencial de conhecimento que, embora inútil para qualquer produção, lhe distinguiria dos mais pobres. E para estes, era absolutamente desnecessário, pois não conseguiriam a habilitação que lhes desse emprego.
A consequência era de poucas escolas, uma esmagadora maioria de analfabetos efetivos ou funcionais.
Ainda na ótica industrial, os governos militares procuraram dotar o País de um ensino mais dirigido, mais adequado a formação profissional. Disso resultou um maior contingente de alfabetizados. Até então, para os pobres, era o conhecimento dos pais, tios, padrinhos que lhe impulsionava o aprendizado no ofício. O código familiar permitia a transmissão do modelo cultural.
Pierre Bourdieu (O Papel do Sistema de Ensino na Reprodução da Estrutura de Distribuição do Capital Cultural, in “A Economia das Trocas Simbólicas”, Perspectiva, SP, 2015, 8ª Edição) assinala que “o rendimento da comunicação pedagógica é função da competência cultural que o receptor deve à educação familiar”.
Curioso é que este “training on the job”, sem base teórica mais consistente, foi depreciado como um “jeitinho brasileiro” e extrapolado como ação marginal, ilícita.
Em depoimento num programa de televisão, o presidente de associação empresarial defendeu esta qualidade do operário brasileiro comparando-o com o alemão, que ele conhecera em sua formação.
Eram aproximadamente estas suas palavras. “O operário brasileiro é o melhor do mundo. Colocado diante de máquina ultrapassada, sem funcionamento adequado, ele é capaz de improvisar, com ferramentas por ele criadas e “com arames”, a condição de funcionamento da máquina durante todo horário de trabalho e usa as horas extras para mantê-la, para que ela continue funcionando. O operário alemão aperta o botão da mais avançada máquina e fica dormindo o dia todo”. O que nos falta, dizia o empresário, é investimento em equipamentos modernos.
Mas este conhecimento não é o que desejamos. Nossa proposta é a formação da cidadania. E, a partir de ou com esta, viria a formação profissional. Os golpistas de 2016, além de deixarem de manter as escolas técnicas, ainda regridem mais, com a “escola sem partido”, na formação do cidadão. É o primeiro passo para o retrocesso aos pré governos militares. A escola da grande evasão e da “preparação para sábios”, ou da doutrinação neopentecostal.
A outra vertente colonizadora, que acompanha a “didática colonial” está na comunicação de massa. Retomemos a ideia de Habermas, citada no início.
Poderíamos ter, dentro de definições e âmbitos de ação precisos, três espaços de comunicação radiofônica e televisiva: o estatal, o público e o empresarial privado. Infelizmente o Brasil só tem, com amplo alcance de massa, a comunicação empresarial privada e, pior ainda, em efetivo monopólio. É nossa desgraça em termos de informação e de cidadania, esta permanente doutrinação colonizadora.
A “esfera pública” conforme Habermas estava sendo arduamente construída, e já apresentava sucesso, com a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) e com as TVs Comunitárias.
A EBC fora criada pela Lei nº 11.652, de 7 de abril de 2008. Seu estatuto social aprovado pelo Decreto nº 6.689, de 10 de dezembro de 2008. A desfiguração da EBC fica evidente nas alterações produzidas pelos golpistas de 2016, conforme Lei nº 13.417, de 2017. Ou seja, de uma possível manifestação da sociedade, a EBC voltou a ser mais uma divulgadora/defensora do mercado.
Em suma, a partir de um diagnóstico errôneo, que intencionalmente oculta o mercado, a escravidão e o liberalismo econômico como causas das submissão cultural colonizada para a quase totalidade da classe média e da classe pobre, é possível criar um movimento verdadeiramente suicida da nacionalidade e do desenvolvimento brasileiro que se manifesta majoritário no legislativo e dominante no poder judiciário.
Estas equivocadas razões levam a focar as agressões de corrupção e impatriotismo não ao mercado, mas ao Estado, não às elites escravistas e seus capitães do mato da classe média, mas a quem procura alterar esta situação, com a pecha de populismo, e assim nos mantemos atrasados política, social, cultural e economicamente.
Pedro Augusto Pinho, avô, administrador aposentado
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