“Os membros do Clube Militar, em nome dos mais santos princípios de humanidade, esperam que o Governo não consinta que os oficiais e as praças do Exército sejam desviados de sua nobre missão [para serem usados, como “capitães do mato” na captura de escravos foragidos que se escondem nos morros do Rio de Janeiro]”. [Além da desonra que esse papel implicaria ao Exército, não seria uma medida eficiente, porque] “em todos os tempos os meios violentos de perseguição não produzem nunca o efeito desejado”
Carta do Clube Militar do Brasil à Princesa Isabel, em outubro de 1887
Roberto Requião[1]
Hoje, quero falar de um país para poucos.
Quero percorrer as sendas, os atalhos, os desvios, os mata-burros e as pinguelas que, obrigatoriamente, deve-se tomar para a construção de um país para poucos.
Hoje, quero falar de um país que se aprumou e, como o homo erectus, ensaiou passos com a cabeça erguida, orgulhoso de sua nova postura, mas que, logo depois, regressou à mediocridade do país do possível, o país liliputiano de Fernando Henrique.
Hoje, quero falar de um país que, em um instante de três anos, recuou às últimas décadas do século 19 e primeiras do século 20, retirando da Constituição, das Leis, do Orçamento e das obrigações do Estado mais de 90 por cento dos brasileiros.
Quero falar de um país que em um piscar de olhos transmuda-se de protagonista a figurante sem importância ou talento na cena internacional; um país que renuncia a soberania sobre o petróleo, a energia, os minerais, as terras, a água, indústrias, tecnologia, o espaço aéreo e aceita o papel de maior produtor planetário de couve e cenouras.
Hoje, quero falar da elite suicida, que ao mesmo tempo em que acirra a luta de classes, apertando ao máximo os torniquetes da exploração do trabalho, é ela própria expropriada e espoliada pelo capital especulativo global e vê, a cada dia que passa, sua importância política, econômica e social reduzida ao papel de fantoche no teatro dos acontecimentos nacionais e internacionais.
Mas, como é que se faz um país para poucos?
Não se trata de uma receita muito sofisticada.
Basta fazer uma gororoba, misturando as sobras do fim da feira do sistema neoliberal.
Basta fazer uma xepa com aqueles produtos já em processo de deterioração, que ninguém mais compra e o mundo rejeita.
Basta reunir o besteirol apregoado pela Globonews, CBN, Bom Dia Brasil, pelo Otavinho, pelos Mesquita, pelos Civita e pelos Sirotsky, com as inestimáveis contribuições do Kim Kataguiri, do Alexandre Frota, do Luciano Huck, do Ratinho e do Danilo Gentili e do guru desses todos, o Armínio Fraga, que temos a exata receita do grude para fazer do Brasil um país para poucos.
Se já éramos donos de algumas marcas notáveis, como a disputa com a Botsuana pelo troféu do país com a pior distribuição de renda do planeta, et pour cause, da maior concentração de rendas do mundo; se já éramos o campeão da desigualdade planetária, onde apenas cinco pessoas – cinco, os dedos de uma mão: um, dois, três, quatro, cinco - concentravam a mesma riqueza que a metade da população mais pobre...... cinco contra cem milhões; se tínhamos, anualmente, mais brasileiros mortos de forma violenta que, por exemplo, as vítimas dos tantos conflitos que incendeiam o Oriente Médio, englobando aí Síria, Israel, Palestina, Turquia, Iêmen, Iraque e Afeganistão; se mais de 90 por cento desses 60 mil brasileiros anualmente abatidos são compostos por negros, mulatos e pobres; se o governo federal e os governos estaduais haviam perdido a batalha contra o crime organizado e, em consequência, o controle dos presídios, das favelas, de periferia pobre das grandes, médias e pequenas cidades brasileiras.
Nada era tão ruim que não pudesse piorar.
E piorou.
Degenerou com a incrível e nunca suficientemente amaldiçoada PEC dos Gastos.
Confesso que até hoje quedo-me estupefato com a aprovação no Congresso dessa suprema sandice que é a emenda constitucional que congelou por 20 anos os gastos públicos.
Busquei na literatura das crises econômicas mundiais decisões semelhantes e só encontrei paralelo com iniciativas de débeis governantes terceiro-mundistas que as colocaram em prática sob pressão de credores, dos rentistas, dos agiotas e dos discípulos da mais tacanha doutrina econômica formulada pelo homem, desde que o antecedente do homo sapiens desceu da árvore.
Em contrapartida, vejo o presidente dos Estados Unidos anunciar o investimento deficitário de um trilhão e 500 bilhões de dólares em infraestrutura, para alavancar a geração de empregos e reativar os negócios.
O Congresso de lá aprova investimento deficitário de um trilhão e 500 bilhões de dólares em infraestrutura.
O Congresso daqui congela os gastos por 20 anos. Lá, pouco se importam com o déficit público, aqui transformaram o déficit público em uma questão ideológica.
É assim que se faz um país para poucos.
O pior disso tudo, o kafkiano, o absurdo é que, diariamente, senadores e deputados que votaram a PEC do congelamento de gastos por 20 anos ocupam a tribuna e desfilam uma lista gigantesca de pedidos de recursos, para isso e àquilo.
Será que não sabem no que votaram? Ou sabem perfeitamente e apenas jogam para a plateia, para ludibriar os seus eleitores?
Adota-se uma política econômica recessiva, antinacional e antipopular, que privilegia o pagamento dos juros da dívida, e choramingam dinheiro para os municípios, lamentam o desemprego, deploram a violência, a qualidade do atendimento à saúde e à educação pública, o encolhimento do programa habitacional, as condições das rodovias e mais.
Vejam o caso da intervenção no Rio de Janeiro.
Com a aprovação da maioria de deputados e senadores, o governo cortou até talo as verbas para a segurança. Apenas cinco dias antes da midiática e errática ideia da intervenção, Temer e Meireles podaram 240 milhões da segurança.
Na sexta de carnaval, dia 9, passam o facão em 240 milhões de reais da segurança pública, e, no dia 14, na quarta de cinzas anunciam a intervenção, para garantir a segurança dos cariocas!!!
Será que a nossa capacidade de raciocinar, de somar dois e dois foi enublada por alguma magia ou algum feitiço a tal ponto que o país não vê essa farsa?
Faz-se um país para poucos destruindo as Leis Sociais e o Estado Social, flexibilizando (para usar um eufemismo bem sem-vergonha) a jornada de trabalho, o descanso e as férias remuneradas, o 13° salário, o FGTS, o contrato assinado; flexibilizando (para usar um eufemismo bem safado) as regras para o trabalho de lactantes e grávidas em ambientes insalubres.
Abro outro parêntese para confessar de novo o meu espanto, para deixar o meu queixo cair, mais uma vez: o que leva um ser humano a botar na lei e a defender o trabalho de mulheres que amamentam ou de gestantes em ambientes prejudiciais à saúde delas e das crianças?
Bom..... acabo por reconhecer a ingenuidade de minha pergunta, afinal se até flexibilizaram - de novo o eufemismo cafajeste - as regras contra o trabalho escravo, que mais esperar?
Faz-se um país para poucos destruindo a sua burguesia nacional, a indústria nacional, a tecnologia nacional, o desenvolvimento nacional, a autoestima nacional.
Mas, a nossa burguesia nacional que vestiu a camisa da CBF e foi às ruas abraçada ao pato da Fiesp; que aplaudiu com entusiasmo a reforma trabalhista; que invadiu Brasília para “convencer” parlamentares a votar a reforma da Previdência; que apoia essa estupidez absoluta que é o plano de privatizações de Temer, Meireles e Moreira que abarca desde a venda da Eletrobrás à autonomia do Banco Central, essas elites não percebem que o pau que dá em Chico, dá em Francisco; que o cipó que a compraz, quando vergasta o lombo do trabalhador, também açoita as suas ilustres ilhargas, quando a luta de classes global a atinge, contrapondo os seus interesses aos interesses imperiais.
E temos aí a liquidação do setor brasileiro de petróleo e gás; a extinção da cláusula de conteúdo nacional para a aquisição de implementos para esse setor; a destruição de todo o complexo nacional de engenharia de obras; a desnacionalização do setor aeronáutico, com a absorção da Embraer pelo Boeing.
Da mesma forma que na área do pré-sal não serão as empresas brasileiras que fornecerão para a Shell, a Exxon, a Total, a British, é de se acreditar que a nova dona da Embraer terá seus próprios fornecedores. Estrangeiros, é claro; temos aí, como nunca em nossa história, a desnacionalização dos setores industrial, agropecuário, comercial, educacional, de serviços.
Mas, com tudo isso acontecendo, a nossa burguesia nacional – as elites - não refreia o impulso do salto para o suicídio.
Ela excita-se com qualquer iniciativa que retire direitos dos trabalhadores, mas recolhe-se diante desse processo massacrante de desnacionalização da economia, de alienação da soberania nacional, de apequenamento de seu espaço e importância.
Um país para poucos se faz com o domínio absoluto do capital financeiro sobre todos os setores de atividades e a destruição das empresas e do empresariado nacional, da tecnologia nacional.
Um país para poucos se faz com a destruição da Previdência Social, eufemisticamente chamada de “reforma”.
Faz-se com a restrição à aposentadoria dos trabalhadores e das classes médias. Faz-se - supremo objetivo do mercado - com a privatização da Previdência.
A destruição do Estado Social, da República Social, intentada nos últimos anos, não se completaria sem a aniquilação da Previdência.
Um país para poucos faz-se também com a transformação das Forças Armadas em polícia interna.
Faz-se com a desmoralização das Forças Armadas, incumbindo-a da tarefa de “capitão do mato” a perseguir pobres e negros nos morros do Rio de Janeiro, enquanto a criminalidade, o tráfico e o consumo de drogas correm soltos nos bairros da classe média na Zona Sul.
Vejam a que ponto chega a hipocrisia da mídia e dos governantes: enquanto as Forças Armadas recebiam o mandato de “capitães do mato” nas favelas cariocas, o PCC, em ações espetaculares e à vista de todos dava demonstração de poder e de impunidade, ajustando contas para manter a unidade de comando do maior agrupamento do crime organizado no Brasil e no continente.
Reprimir o tráfico de drogas e de armas sem combater o PCC? Afrontar o crime organizado sem retomar o comando estatal do sistema penitenciário?
Com a cartelização do tráfico de drogas e armas e com a internacionalização das suas operações, PCC é hoje, como já se disse, a nossa mais poderosa multinacional.
O sucateamento das Forças Armadas, sonegando a elas os meios para bem guardar as nossas fronteiras, dá-se passe livre para a expansão do crime organizado. Mas, ao invés de prover as Forças Armada para bom desempenho de suas tarefas, gastam-se 600 milhões reais na operação na favela da Maré, sem qualquer resultado.
Em outubro de 1887, o Clube Militar, talvez o mais influente fórum de debates de nossas Forças Armadas, mandou uma petição à Princesa Isabel, então regente do Império, solicitando que o Exército não fosse usado com o “capitão do mato” para a captura de escravos foragidos que se escondiam nos morros do Rio de Janeiro, atemorizando a cidade.
Dizia a petição: “Os membros do Clube Militar, em nome dos mais santos princípios de humanidade, esperam que o Governo Imperial não consinta que os oficias e as praças do Exército sejam desviados de sua nobre missão”.
Além da desonra que o papel implicava, ponderavam que “em todos os tempos os meios violentos de perseguição não produzem nunca o efeito desejado”.
Cento e trinta anos depois, com o fracasso da operação na Maré, eis aí a comprovação do que diziam os militares à Princesa Isabel: “Em todos os tempos os meios violentos de perseguição não produzem os efeitos desejados”.
Um país para poucos se faz também com o monopólio dos meios de comunicação, com a manipulação e domínio da opinião pública.
O presidente Temer disse que decidiu intervir militarmente no Rio de Janeiro depois de ver, pela TV Globo, os arrastões na praia de Ipanema, no Carnaval. Realmente, as Organizações Globo, com a prestimosa colaboração dos parceiros que açambarcam o jornalismo pátrio, deram aos arrastões uma dimensão apocalíptica.
Daí o raciocínio primário e preconceituoso da mídia e das autoridades: arrastão é coisa de pobre, de favelado. Vamos então tomar as favelas do Rio.
Operações contra o crime organizado que domina o tráfico nos bairros chiques da Zona Sul?
Operações contra os bicheiros que dominam o carnaval da Globo e o crime organizado nos subúrbios cariocas?
Operações contra o crime organizado que domina os presídios brasileiros e o tráfico nacional e internacional de drogas e armas?
Operações contra o crime organizado que repete em grande estilo, sem inibição ou castigo o massacre de São Valentim, fazendo de Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo Chicagos quaisquer?
Não, isso não.
Isso não vem ao caso, como diria certo juiz federal.
Faz-se um país para poucos vendendo fantasias, mentiras e notícias falsas para a opinião pública.
Faz-se um país para poucos escondendo a verdade, distorcendo a verdade, contando meias verdades como faz a mídia comercial e monopolista.
Faz-se um país para poucos dizendo que o país está crescendo, que o desemprego diminui, que as atividades industriais crescem, que as reformas da CLT e da Previdência vão salvar o Brasil do buraco, que as privatizações vão destravar o crescimento.
Faz-se um país para poucos quando a imprensa comercial monopolista vende a ideia de que o Ministério Público, o Judiciário e a “Polícia Federal a Lei é Para Todos” não precisam de provas para condenar quem quer que seja.
Em todo o mundo ocidental adotaram-se medidas para garantir a democratização da informação, de tal forma a impedir que alguns poucos veículos, vinculados e a serviço de grandes grupos econômicos e políticos dominassem e manipulassem a opinião pública.
Em todo o mundo ocidental. Menos no Brasil.
Essas são algumas receitas para se fazer um país para poucos. Como não há mal que sempre dure, essa xepa, essa gororoba será vomitada pelos brasileiros.
[1] Roberto Requião é senador da República no segundo mandato. Foi governador do Paraná por três mandatos, prefeito de Curitiba, secretário de estado, deputado estadual, oficial do exército brasileiro, professor universitário, industrial, agricultor e advogado. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo e comunicação.
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